quinta-feira, 19 de maio de 2011

Continuando... 2-O significado do ato de comer (livro COMIDA: UMA HISTÓRIA)

A Magia do Alimento Curativo
[...]A dietética tradicional depende, na maioria das culturas, de categorias arbitrárias. Portanto, ela não é científica ou, pelo menos, não no sentido usual da palavra. É mais fácil interpretá-lo como uma espécie de magia transformadora semelhante à magia do canibalismo: adquirimos as qualidades daquilo que comemos. Nós também podemos ter um temperamento "quente" e um gênio "frio". Por outro lado, existe uma premissa que associa comida e saúde. O que está sendo cozido, "se não remédios"?, perguntava quando um tratado pseudo-hipocrático da Antiguidade. Com efeito, em um certo sentido, o alimento é um remédio, apesar dos esforços que os governos fazem para distinguir entre os dois por razões de tributação, regulamentação e padronização. Damien Hirst, artista plástico que fundou um restaurante batizado, de forma muito pouco apetitosa, como "Farmácia", pintou várias sátiras inteligentes nas quais os alimentos apareciam acondicionados como produtos farmacêuticos. Em um sentido semelhante, a comida também é veneno. A observação universal revela que a comida demais ou comida de menos faz mal e às vezes causa a morte. Algumas outras correspondências são óbvias demais para serem chamadas de científicas, mas, ao mesmo tempo, têm justificativas suficientes para serem chamadas de superstição. Galeno proibia o peixe de água de esgoto e substâncias indigestas - como a carne cartilaginosa - para os idosos. Muito da história tanto da comida como da medicina poderia ser escrito em termos da busca por uma tabulação mais precisa das correspondências entre alimentos específicos e condições físicas particulares.
A conexão entre comida e saúde é mais evidente nos casos em que doenças específicas são causadas por deficiências dietéticas e, portanto, podem ser tratadas por meio de ajustes dietéticos. O béribéri ocorre em pessoas que têm como alimentação-base o arroz polido, porque não contém tiamina; a deficiência de vitamina A - que em casos raros pode se originar de dietas curiosamente seletivas - causa olhos secos e até mesmo cegueira. A falta de vitamina D causa raquitismo. A ausência de niacina provoca pelagra. Entre os componentes minerais dos alimentos, o iodo é necessário para evitar o bócio; o cálcio, para proteger da osteoporose, e o ferro, contra a anemia. O caso mais claro na história é o do escorbuto, uma doença que é pura e simplesmente causada pela falta do ácido ascórbico. Na maioria das sociedade, e na maior parte do tempo, o escorbuto foi um fenômeno secundário, mas a doença adquiriu um significado inusitado na história mundial nos séculos XVI, XVII e XVIII, quando enfraqueceu ou matou um grande número de marinheiros europeus envolvidos nas longas viagens voltadas para a exploração e o comércio transoceânicos.[...]

Feitiçaria Dietética

O sucesso no tratamento do escorbuto reforçou a noção de que a comida poderia ser alçada a um papel superior ao de fonte de nutrição e colocada na categoria de fonte de cura. A comida saudável passou a ser uma busca na qual a ciência emergente encontrou a religião permanente. Era tanto uma pseudociência como uma vocação mística: pseudocientífica em virtude do novo prestígio da ciência no Ocidente do século XIX; mística porque foi desenvolvida sem evidências por visionários que, em muitos casos, tinham se inspirado na religião: se a comida era a chave para a saúde física, por que não ocorreria o mesmo com a saúde moral? [...]


A Dietética da Abundância

[...] No final das contas, o remédio científico é aquele que funciona. Como a comida é produzida naturalmente, de modo que sua composição e suas propriedades variam de um momento para o outro e de um lugar para o outro, as condições científicas para testar sua qualidade não podem nunca ser garantidas, a não ser por meio de uma intervenção técnica que seria repugnante para qualquer pessoa que queira a comida vinda do solo e não do laboratório. Dietas estranhas ou não-equilibradas podem provocar doenças. Mas a maioria das sociedades tem milhares de anos de experiência atrás de si e, a não ser em circunstâncias de mudança social convulsiva, quando a sabedoria tradicional é esquecida ou abandonada, é muito pouco provável que a dieta provoque doença.[...]
A revolução que começou com a descoberta de que a comida serve para algo mais além da alimentação ainda continua. Estamos sempre descobrindo meios de utilizar o alimento socialmente: para formar laços com os semelhantes, que comem as mesmas coisas; para nos reconstruir, dar novas formas a nossos corpos, refazer nossos relacionamentos com as pessoas, com a natureza, com os deuses. Os nutricionistas gostam de cultivar uma auto-imagem "científica", despida de qualquer contexto cultural. Mas eles são filhos de sua época e herdeiros de uma longa tradição: a obsessão com a dieta é uma flutuação da história cultural, uma doença moderna da qual nenhuma comida saudável pode nos curar.

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Fim do Capítulo 2.

Reflitam...

terça-feira, 17 de maio de 2011

2- O significado do Ato de Comer

A comida como rito e magia

(Os trechos abaixo são do segundo capítulo do livro COMIDA: UMA HISTÓRIA)

A lógica do canibalismo

[...] Na lógica canibal, o canibalismo é um exemplo claro de um fato universal: a comida reinterpretada como algo mais que sustento físico -  a substituição da nutrição por valor simbólico ou poder mágico como motivo para comer; ou seja, a descoberta de que a comida tem um significado. Depois do ato de cozinhar, talvez esta seja a segunda grande revolução na história da comida. Diríamos segunda em importância, jé que como sabemos muito pouco sobre o tema, suas origens podem ser até mais antigas que as do cozimento. Nenhum povo, por mais faminto, escapou de seus efeitos, pois não existe hoje uma só sociedade que coma apenas para viver. Em todo o mundo, comer é um ato culturalmente transformador - às vezes de uma forma mágica. O ato de comer possui sua própria alquimia; ele transforma indivíduos em sociedade e doença em saúde; muda personalidades; pode sacralizar atos aparentemente seculares; funciona como um ritual; tranforma-se em um ritual; pode fazer com que a comida seja divina ou diabólica; pode liberar energia; pode criar laços; pode significar vingança ou amor e pode proclamar a identidade. Uma mudança tão revolucionária quanto qualquer outra na história de nossa espécie ocorreu quando o ato de comer deixou de ser meramente prático e passou a ser também um ritual. Dos canibais aos homeopatas e admiradores de comidas saudáveis, todos aqueles que comem buscam alimentos que, a seu ver, irão polir o caráter, ampliar os poderes, prolongar a vida.
Dietas e hábitos alimentares são inseparáveis do resto da cultura: em particular, eles interagem com a religião, com a moral e com a medicina. Eles se conectam também com as percepções espirituais em programas de comer para "alimentar a alma" e com ideais seculares como saúde, beleza e preparação física. Os obcecados por comida saudável -  ou outros adeptos de novidades que comem para ter beleza, energia mental, ímpeto sexual, tranquilidade ou espiritualidade - estão na categoria dos canibais. Eles também buscam alimentos por seu efeito transceendental; são parte daquela grande revolução que ainda ressoa e que, pela primeira vez, atribuiu um significado ao ato de comer.

Comida Sagrada e Comida Profana

[...] Os alimentos básicos quase sempre são sagrados porque, como dependemos deles, passam a ter um poder divino. [...] Não é nenhum desrespeito comer um deus: é uma maneira de cultuá-lo.
[...] Os supostos efeitos são mágicos no sentido de que são esperados ignorando-se ou até contrariando as evidências, e muitos deles são associados a uma crença amaplamente generalizada nas propriedades mágicas do alimento, algo que ocorre em sociedades com todos os níveis de sofisticação: a crença na interdependência da comida e do sexo.
[...] a dietética moderna foi fundada, em parte, no começo do século XIX, como resultado de uma tentativa de criar uma dieta que levasse à castidade.
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Continua...